Análise psíquica e hipótese diagnóstica do personagem Zé Pequeno

O filme “Cidade de Deus”, um clássico brasileiro, conta a história de vida do personagem Buscapé, nascido e criado em uma favela do Rio de Janeiro. Durante a produção cinematográfica, o crescimento do crime organizado dentro da comunidade é retratado com ênfase no controle e influência que o chefe da máfia, Zé Pequeno, exerce sobre os moradores. 

Por meio deste texto, serão analisados os aspectos psíquicos do comportamento de Zé Pequeno, os quais contribuirão para uma posterior hipótese diagnóstica do personagem. 

Por trás da imagem de grandeza e agressividade exercidas pelo mafioso, o filme mostra a infância de “Dadinho” (nome de batismo de Zé Pequeno) em um contexto de extrema pobreza e violência dentro da favela. Sem uma estrutura familiar que o guie e convivendo diariamente com o desprezo dos colegas, é influenciado por pessoas que obtiveram poder por meio do tráfico e criminalidade juvenil. Dadinho inicia sua vida no crime ainda criança, na busca por reconhecimento e respeito, mudando, posteriormente, seu nome para “Zé Pequeno”.

Desde sua juventude, o personagem apresenta traços de impulsividade, agressividade e falta de empatia com terceiros, especialmente com aqueles que não seguem seus comandos e, automaticamente, se tornam seus inimigos. Além disso, seu trajeto é marcado por uma desconfiança excessiva em relação às pessoas, que sempre culmina em violência e reafirma a sua dificuldade em estabelecer vínculos afetivos. 

 “Comportamentos muito contraditórios e não confiáveis por parte da mãe provavelmente reforçam o extremo psicopático do espectro do ódio, permitindo a interpretação de seu comportamento como sendo uma traição pelo objeto potencialmente bom que, a partir daí, torna-se imprevisível e esmagadoramente mau. A identificação com um objeto traidor inicia a trajetória rumo a uma destruição revanchista de todas as relações objetais.” (KERNBERG, 1995).

Na busca incessante por poder e controle, Zé Pequeno demonstra desprezo por limites éticos e regras/leis, agindo unicamente de acordo com os seus objetivos pessoais de domínio da comunidade, mesmo que julgue necessário prejudicar outros indivíduos para manter sua posição autoritária. 

Com base no DSM-V, seus comportamentos e características transmitem traços de um Transtorno de Personalidade Antissocial (TPA), marcado por uma estrutura de funcionamento perversa e uma personalidade narcisista. 

Durante toda a sua vida, o criminoso revela indiferença ao bem-estar, direitos e sentimentos alheios por meio do uso contínuo de manipulação e exploração. Tais aspectos confirmam a insensibilidade e falta de empatia constatadas pelo diagnóstico. Zé Pequeno utiliza seu poder para ameaçar e agredir fisicamente e moralmente seus possíveis adversários, mantendo, portanto, seu status hierárquico e garantindo sua autopreservação.

Por meio do crime, o personagem trafica, assedia, rouba e mata visando impor sua autoridade dentro da favela, mostrando desdém por qualquer lei e regra, além de falta de consciência moral. A impulsividade e imprudência em suas atitudes são notáveis a partir do descaso com as consequências de seus atos e falta de preocupações em relação ao futuro, sustentadas ainda pela ausência de remorso. 

O personagem apresenta, além da estrutura perversa, um alto grau de perversidade, caracterizado pelo caráter e comportamento maldosos/cruéis. Nota-se a significativa presença da onipotência associada à idealização de si próprio como um mecanismo de defesa contra o ambiente hostil e violento da comunidade em que vive. Isso pode ser percebido diante de comportamentos de envolvimento em conflitos e criação de rivalidades entre os chefes do tráfico e seus possíveis inimigos, situações nas quais o personagem aparenta sempre estar destemido e não reconhecer suas próprias limitações, enquanto exalta e engrandece sua imagem. 

Outro mecanismo de defesa também apresentado por Zé Pequeno é a identificação projetiva, que se manifesta a partir de características internas não aceitas pelo próprio indivíduo e consequentemente atribuídas aos objetos como forma de externalizar, por meio de uma projeção do sujeito no outro, sua perversidade. Segundo Melanie Klein, no texto “Notas sobre alguns mecanismos esquizóides”, da obra “Inveja e gratidão e outros trabalhos” (1946-1963), “Muito do ódio contra partes do self é agora dirigido contra a mãe. Isso leva a uma forma particular de identificação que estabelece o protótipo de uma relação de objeto agressiva. Sugiro o termo ‘identificação projetiva’ para esses processos.”

Essa defesa mostra-se presente ao longo do filme por meio da convicção constante do personagem de que as pessoas ao seu redor são más e querem prejudicá-lo, encontrando assim, espaço para cometer assassinatos ou puni-las, enquanto justifica suas atitudes como adequadas. 

“O ódio como forma de reversão de sofrimento constitui o tipo básico de triunfo revanchista sobre o objeto, (…). Os pacientes com tal motivação, sadicamente, maltratam os outros, porque eles próprios tiveram a experiência de serem maltratados, igualmente, por objetos sádicos; inconscientemente, eles tornam-se seus próprios objetos persecutórios, ao atacarem sadicamente suas vítimas.” (KERNBERG, 1995).

Por fim, Zé Pequeno ainda comprova a presença do mecanismo de cisão, caracterizado pela divisão de identidade, objetos ou comportamentos em setores unicamente positivos ou negativos, sem que haja integração destes. 

A cisão da personalidade do mafioso é caracterizada pelo antagonismo entre uma infância vítima de um ambiente violento, onde o sentimento de marginalização e impotência prevaleciam, e o desenvolvimento de uma personalidade adulta cruel e criminosa.

Ademais, o personagem também demonstra a utilização desse mecanismo de cisão dos objetos (pessoas), que são segregados em bons ou maus. Nessa separação, o personagem dita suas relações com os demais moradores da comunidade de acordo com sua própria interpretação, exemplificada pelo uso de violência, criação de inimizades e indiferença pela vida daqueles que acredita serem “maus”, em oposição à relação de afeto que possui por seu companheiro Bené e o intenso sofrimento causado pela morte do parceiro.  

A partir da análise do filme e dos conceitos psicanalíticos, é possível notar a multiplicidade de fatores que levaram o personagem à drástica mudança comportamental e social na favela em que vive. Sua infância marcada por impotência e violência, em conjunto com a desestruturação familiar e influências externas são retratados no filme como os principais antecedentes da criminalidade de Zé Pequeno, marcada por sua conquista de poder por meio da agressividade destrutiva, desprezo e imposição autoritária. 

Texto por: Luana Ranali de Carvalho Pinto

Referências bibliográficas

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.

KERNBERG, Otto F. Psicopatologia do ódio. In: ______. Agressão nos Transtornos de Personalidade e nas Perversões. Porto Alegre: ArtMed, 1995.

KLEIN, Melanie. Notas sobre alguns mecanismos esquizóides (1946). In: ______. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963), p. 20-43.. Rio de Janeiro: Imago. 

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